O futebol de base é, muitas vezes, apresentado como um palco de gols, defesas, vitórias e derrotas. Mas por trás da bola rolando, há um universo complexo de cuidados, rotinas e decisões que sustentam — e muitas vezes salvam — a trajetória de um jovem atleta.
A saúde, neste contexto, não se limita a um bom preparo físico ou ao tratamento de lesões. Ela passa pela mente, pela boca, pelo sono, pela respiração, pela alimentação, pelas emoções e pela autopercepção. É um campo vasto e multidisciplinar, habitado por profissionais que, mesmo longe dos holofotes, são peças-chave na formação de um jogador.
“O cuidado médico com um atleta de base durante a fase de crescimento é um processo complexo e multidisciplinar, que vai muito além do tratamento de lesões”, alerta o médico do esporte Ton Jeferson, que atua nas categorias de base do Vitória/BA e já serviu a Seleção Brasileira em convocações nas categorias inferiores.
“O acompanhamento começa com uma avaliação pré-participação completa, incluindo análises cardiológicas e musculoesqueléticas detalhadas para mapear riscos individuais e prevenir eventos graves”, complementa.
Para ele, o ponto central está no monitoramento do crescimento e da maturação sexual. “Durante o estirão, o corpo se torna mais vulnerável a lesões específicas, exigindo ajustes na carga de treino. A avaliação da idade biológica, e não apenas da cronológica, é fundamental para um planejamento seguro”, destaca Ton.
O médico reforça ainda que o papel da medicina esportiva é proativo. “Baseia-se na identificação de fatores de risco individuais para criar programas preventivos personalizados. Atuamos como integradores de dados, monitorando respostas fisiológicas ao treino e ajustando cargas junto à comissão técnica, antes que a lesão aconteça”.
Ton Jeferson é médico do Vitória/BA (Foto: Arquivo Pessoal)
Entre o silêncio e o grito: o que a mente esconde
O campo da saúde mental, por sua vez, é uma das camadas mais sensíveis — e negligenciadas — da formação esportiva. O treinador mental Carlos Bertoldi, o Ticão, toca em um ponto fundamental: a influência da pressão familiar. “O principal impacto é a confusão afetiva. O atleta começa a entender que o amor que recebe está condicionado à sua performance. Quando joga mal, muitos pais deixam de falar com o filho. Isso é mais comum do que se imagina”, relata. Segundo ele, a punição pelo desempenho ruim, manifestada pelo silêncio ou pela frieza, provoca efeitos devastadores na psique infantil.
Ticão também destaca os efeitos da pressão social e digital.
“O atleta confunde o personagem com a própria identidade. Ele é respeitado porque joga no Flamengo, por exemplo, e passa a viver esse personagem o tempo inteiro. Mas ele precisa entender que futebol é parte da sua jornada, não o todo de quem ele é”.
Para o treinador mental, o treino psicológico permite resgatar o equilíbrio emocional e a responsabilidade sobre si: “É uma jornada de consciência, percepção e fortalecimento da identidade”.
Ticão é ex-jogador profissional e hoje atua como treinador mental para atletas (Foto: Arquivo Pessoal)
Reprogramar o cérebro para reencontrar o prazer de jogar
Na mesma linha de atuação, a hipnoterapeuta Pâmella Mello reforça o papel do subconsciente no desempenho esportivo. “A mente de um atleta é como um centro de comando de alta performance.
Mas diante da pressão ou de traumas não resolvidos, o cérebro ativa o modo de sobrevivência: aumenta o cortisol, reduz o foco e bloqueia a performance. Esses bloqueios não são fraquezas. São padrões gravados no sistema nervoso”, explica.
Pâmella defende o uso da hipnoterapia como uma ponte de reprogramação emocional. “Imagine que a mente esteja cheia de registros negativos: críticas, derrotas, medos. A hipnose acessa essa camada e substitui esses padrões por confiança, foco e tranquilidade. O atleta para de agir por medo e começa a competir com segurança, mesmo sob pressão”.
A profissional salienta que o efeito não é apenas sintomático.
“Mudamos a raiz. Criamos novas conexões. E quando o prazer volta, a performance acompanha”.
Pâmella Mello é uma hipnoterapeuta reconhecida no Brasil com cases de sucesso no esporte (Foto: Arquivo Pessoal)
O que entra pela boca afeta o que sai dos pés
Outro pilar fundamental na construção de um atleta saudável é a nutrição — e o impacto vai além da recuperação muscular. “Durante a base, o corpo está em crescimento e adaptação constante. Uma alimentação adequada sustenta o treino, constrói músculos, fortalece o sistema imune, melhora o foco e até a tomada de decisão em campo”, ensina a nutricionista esportiva Melise Bisoffi.
Mas os erros ainda são recorrentes. “Vemos muito jejum prolongado, dietas sem orientação, excesso de ultraprocessados e pouca hidratação. Além disso, há o uso equivocado de suplementos”, alerta. Para quem sonha com a elite do futebol, ela é direta.
“Não existe uma dieta ideal. Existe um plano individual. A comida tem que estar sincronizada com a rotina do treino, a posição em campo e a fase de crescimento. Um nutricionista esportivo é essencial nesse processo”.
Melise Bisoffi é nutricionista do esporte e mãe de atleta (Foto: Arquivo Pessoal)
Corpo em movimento, mente em paz
O educador físico Tácio Bispo, coordenador da Academia do Leão (Vitória), chama atenção para o impacto da fase de desenvolvimento motor e puberal. “Antes da bola rolar, existe uma criança com sonhos e valores a formar. A preparação física não é só para o jogo, é para a vida.”
Ele denuncia ainda o impacto negativo da tecnologia e da escassez de espaços livres.
“Temos mais crianças com pobre base motora. O desafio é criar ambientes desafiadores e seguros para estimular o desenvolvimento completo”.
Tácio Bispo atua na Academia do Leão, do Vitória/BA (Foto: Arquivo Pessoal)
Fisioterapia não é só recuperação. É educação
Hemerson Silva, fisioterapeuta do Athletico Paranaense, reforça que o papel da fisioterapia começa muito antes da lesão. “É preciso criar uma cultura interna de valorização. O atleta não pode ter medo de procurar a fisioterapia. Muitas vezes, uma entorse leve ignorada gera um problema crônico depois”. Para ele, educar o atleta sobre dor, sobrecarga e prevenção é tão importante quanto tratar.
“Com testes e dados da pré-temporada, conseguimos identificar déficits de força, mobilidade, histórico de lesões. A partir disso, criamos planos personalizados de intervenção. E no retorno ao campo, o processo é criterioso: reabilitação funcional, estímulos progressivos e comunicação constante com a preparação física”, detalha.
Hemerson Silva é fisioterapeuta na base do Athletico/PR (Foto: Arquivo Pessoal)
Quando um dente tira o brilho de uma promessa
A saúde bucal também tem papel decisivo — embora ainda subestimado por muitos — no rendimento esportivo. O dentista Fabio Cantador traz dados relevantes. “Problemas bucais exigem energia do corpo, sobrecarregam o sistema imunológico e podem gerar fadiga, dores, inflamações musculares e até lesões. Já vi casos de perda de força muscular associada a periodontite. Já reabilitei atleta que fraturou dois dentes numa dividida”, relata.
Cantador afirma que muitos atletas chegam à clínica com cáries, gengivite, erosão dental por dietas ácidas e traumas.
“O básico ainda é o mais importante: escovação, fio dental, hidratação e visitas trimestrais. A saúde bucal é aliada da performance — ou vilã, quando ignorada”, conclui.
Fabio Cantador é dentista e tem muitos pacientes no meio do futebol (Foto: Arquivo Pessoal)
Saúde em rede
O futebol de base no Brasil é mais do que um celeiro de talentos. É também um campo fértil de cuidado e prevenção. Atrás de cada chute promissor, há um exército invisível de profissionais atentos à saúde de quem ainda está em formação — e que precisa mais de proteção do que de cobrança.
O atleta, como lembram os especialistas, não é uma máquina de rendimento. É um ser humano em construção. E se queremos mais craques saudáveis dentro de campo, precisamos, antes de tudo, cuidar do que acontece fora dele.