Há 20 anos, um mito criado na zona sul de Porto Alegre era escolhido o melhor jogador do mundo pela segunda vez consecutiva. Ronaldo de Assis Moreira, então com 25 anos e no Barcelona, eternizava-se ainda mais na história do futebol ao vencer a disputa da Fifa. Concorriam com ele nomes como o Frank Lampard e Samuel Eto’o, que ficaram em segundo e terceiro lugares, respectivamente.
Passadas duas décadas daquele 19 de dezembro de 2005, Ronaldinho mantém o “Gaúcho” no nome e segue como um cidadão do mundo. Engana-se quem pensa que o craque não tem mais ligações com o Rio Grande do Sul. E não é só pelo Grêmio, clube que o lançou. Ele está enraizado nas suas origens por meio de histórias desconhecidas para muitos e inesquecíveis para quem as viveu.
E foi atrás desses “causos” que o ge partiu, para contar aos leitores como se deu a gênese de um bruxo da bola. O resultado da busca foi um baú recheado de momentos curiosos na infância, com a família e em festas memoráveis.
Desde o início, assombroso
No primeiro treino, Ronaldinho, com 10 anos, conquistou o treinador Cleon Espinoza — irmão de Valdir Espinoza, técnico campeão do mundo pelo Grêmio em 1983. Cleon comandava o pré-mirim da Associação dos Servidores da Procergs (Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio Grande do Sul).
O treinador ouviu falar que na categoria de cima havia um menino com idade para o pré-mirim e que jogava muita bola. A “fofoca”, é claro, se confirmou.
– Eles respeitavam demais o Ronaldo. Não tentavam tirar a bola. Sabe quando o cara é bom, recebe a bola e os outros ficam esperando para ver o que ele vai fazer? Não dá para entrar de primeira. E eu gostei. E o treino dele foi ótimo, mesmo com os guris com dois anos a mais. E isso quando tu tens 10 anos é muita diferença. E resolvi convidá-lo para a nossa categoria – lembra Cleon, hoje com 73 anos.

Ronaldinho caminhava pouco mais de um quilômetro e meio a pé entre o ginásio onde ocorriam os treinamentos, na estrutura do Exército, na Rua Corrêa Lima, até as proximidades do Parque Marinha do Brasil, onde pegava o ônibus para casa, na Vila Nova. Ao oferecer uma carona, Cleon “fisgou” o moleque que estava relutante em trocar de categoria. No caminho, Ronaldinho se enturmou com os colegas do novo time que também estavam no carro.
E a partir daquela carona as quadras gaúchas passaram a viver cenas que, anos depois, virariam até propaganda da gigante dos produtos esportivos Nike. Chapéus, dribles, canetas. A timidez sumia em quadra e dava lugar a ousadia que assombrava os adversários.
– Como o Ronaldo não tinha feito nenhum treino ainda comigo, eu botei ele no time reserva. Ele entrou no segundo tempo. Na primeira bola que ele pegou, bateram um lateral, ele matou no peito, deu um chapéu e, sem sair do lugar, o guri se virou, e ele deu outro chapéu e deu a bola para outro cara fazer o gol. Na hora que ele fez isso, o treinador do outro time se levantou do banco e perguntou: o que é isso? – contou Cleon sobre a estreia de Ronaldinho no pré-mirim.

Futebol no sangue
Para Ronaldinho, a bola sempre esteve longe de ser somente profissão. Era brincadeira que vinha de berço. Jogar futebol era uma das diversões da família Assis, conhecida nos campos de Porto Alegre. O pai do craque, o “seu” João, e um dos tios, João Ademar, o Miquimba, também eram talentos reconhecidos da várzea.
Não à toa a família deu origem a mais de um jogador. Roberto, o irmão mais velho de Ronaldinho, foi o primeiro a jogar profissionalmente, também pelo Grêmio, e era inspiração para o irmão. Ronaldo não era mais do que “o irmão do Assis”. O tempo se encarregou de inverter a referência depois.
– Nós éramos bons. Quando eles viam que o nosso time vinha com o Ronaldo junto, porque todo mundo conhecia ele, por ser também irmão do Assis, sabiam que ele jogava bem. Eles apertavam a marcação, mas não adiantava muito – conta o autônomo André de Assis Machado, 45 anos, primo de Ronaldinho.
– Quem conviveu com o Ronaldo sabe que ele sempre viveu no auge do futebol. Lembro de um jogo, quando ainda éramos pequenos, que ele cobrou uma falta e colocou no ângulo. Desde pequeno, sempre teve essa característica – acrescenta André.
Ele começou a frequentar o Grêmio muito cedo. Sempre esteve envolvido porque o Assis já jogava. Depois do falecimento do pai, se tornou mais frequente no Olímpico porque o Roberto se tornou essa figura paterna.”
— André de Assis Machado, primo de Ronaldinho Gaúcho
Pelas mãos do irmão, Ronaldinho entrou nas categorias de base do Grêmio. Passou a ser uma figura monitorada de perto e sempre que possível, o jovem atleta recebia recomendações: jogar peladas, seguir no futsal e brincar de futebol na praia não era recomendável, visto os riscos de lesões. Mas era difícil segurar o craque.
– O Grêmio resolveu que quem estivesse na base não podia mais jogar com a gente. Deviam ficar só no futebol de campo, o que eu achei muito errado. O futsal permitia a eles algo que o campo não permite. Ginásios lotados, charanga, pressão. Nessa idade, o futebol de campo não tem isso. Quando ele tinha de 14 para 15 anos, veio essa recomendação. Mas confesso que ele ainda foi em alguns jogos. Sempre tinha um olheiro lá para não deixar ele jogar – revela Cleon Espinoza.

Ronaldinho cresceu, consolidou-se e explodiu. Saiu do Grêmio e colocou PSG, Barcelona, Milan, Flamengo, Atlético-MG, Querétaro e Fluminense no currículo. Entre momentos mágicos e outros nem tanto, nunca perdeu a alma brincalhona que o fez brilhar nas quadras, nos campos de várzea e na base do Tricolor gaúcho.
– Sempre tentou ser malandro. Eu lembro que teve um pênalti pro time dele e eu, logicamente, também tentava ser malandro. Já via que ele batia e sempre fazia a mesma coisa: ficava olhando para um lado e chutava para o outro. Eu era goleiro. Quando ele foi contra mim, ficava olhando para um lado: ah, ele vai chutar no outro. E eu pulei para outro (canto) e mesmo assim não consegui. Acertei o canto e sai na foto – recorda Tiago Ritter, colega de Ronaldinho no futsal e na base do Grêmio.
Tiago Ritter relembra histórias com Ronaldinho na infância
– A gente dividia o vestiário. Vi ele fazendo embaixadinha com a cabeça com aquelas bolas de borracha, de treinamento. Parecia a coisa mais fácil do mundo. Eu falei: isso é muito fácil, dá aqui a bola. Tentava fazer e não fazia duas. As coisas que ele fazia pareciam ser tão fáceis. Quando ia tentar replicar, era impossível – diverte-se Ritter, atualmente empresário.
Ritter viu também Ronaldinho vestir a camisa da seleção brasileira pela primeira vez. O grupo de guris formou o New Kids, time para jogar futebol de areia no litoral do Rio Grande do Sul. Faltavam os uniformes, já que os meninos não podiam se identificar como Grêmio ou Asprocergs, pois tinham origens diferentes.
O técnico Augusto Bandeira de Mello foi a uma loja e só encontrou os uniformes da seleção brasileira em número suficiente para o time todo. Comprou e o resto é história – registrada em imagens.
– Teve um mutirão das mães costurando os números na véspera do torneio. Com esse time, nunca perdemos um jogo. Acho que jogamos três anos juntos – diz Ritter.
A vida alegre como música
O menino que usava a mesma camisa do Grêmio surrada e apertada tornou-se milionário. A festas em família, quando alegrava-se com o refrigerante comprado pelos tios, tornaram-se portentosas. O sítio que possuía em Eldorado do Sul recebeu nomes como Belo, Turma do Pagode, Fundo de Quintal — paixão da mãe, dona Miguelina — Tchakabum e Grupo Revelação.
A música, aliás, sempre acompanhou Ronaldinho, como lembra o amigo desde os tempos de futsal na Asprocergs e base do Grêmio, o ex-volante Claiton, que defendeu Inter, Santos, Botafogo e Flamengo.
– Na época que ele foi o melhor do mundo pela primeira vez (2004), ele fez um show do Belo em Eldorado. Perdeu o controle. Acho que tinha umas 15 mil pessoas naquele show. Ele tinha uma agenda. Cada mês era um (artista), mesmo quando ele jogava no Barcelona. Ele vinha, tinha um mês de férias. Tinha que ter nome na lista, mas era tudo liberado, bebida liberada. Ninguém pagava nada. Era tudo na conta dele – recorda o ex-jogador.
– Em todos os shows que ele trazia, ele também tocava. Na época não tinha celular com vídeo e foto. Então, não se mostrava. Mas ele toca todos os instrumentos. Só que tem que ter coro, que nem a bola, que também tem coro. Ele é um fenômeno – lembra Claiton.
Ele me chamava todos os dias para saber como é que eu estava, se eu melhorei, se eu já estava comendo. As pessoas pensam que ele é só festa, mas ele é um coração. Um baita irmão, um baita tio, um pai hoje”
— Claiton, ex-jogador e amigo, sobre o período em que sofreu um AVC
A despeito da torcida do Grêmio, magoada porque o antigo prodígio escolheu o Flamengo em 2011, há saudade do craque em Porto Alegre. Cleon, André, Tiago e Claiton são apenas alguns dos que conviveram com o eterno camisa 10 e dele guardam marcantes e alegres memórias.
Da origem humilde à ascensão meteórica, o Ronaldo, cada vez mais mundial, nunca deixou de ser o Gaúcho, que, por aqui, começou a escrever seu destino com os pés.
– O nosso orgulho é ver que um dos nossos se tornou o melhor do mundo. É só agradecimento que dá para ter. É algo inexplicável – finaliza Cleon Espinoza.