| Foto: Jefferson Botega
Júlio de Castilhos, dia 3 de julho de 2025. Faz frio na cidade da região central do Estado. Os ponteiros do relógio se aproximam das 13h30min. Um dos quadrados da tela na qual aparecem as imagens das câmeras de segurança do presídio estadual do município mostra o que se passa no pátio.
Apenados estão reunidos em grupos ao sol. Conversam, gesticulam, fazem alongamentos. A expectativa é grande: falta pouco para a bola rolar. E eles sabem que haverá prêmios em jogo – medalhas, refrigerante e erva-mate, o que é luxo onde vivem. Sem falar na moral de ser campeão.
O tempo encoberto e os 12ºC não são empecilhos para mais uma edição do torneio de futsal conhecido como Copa Pejulio — abreviação de Presídio Estadual de Júlio de Castilhos. A competição é organizada desde 2021 e ocorre periodicamente. Na edição mais recente, mais de 30 presidiários participaram, divididos em seis times.
Zero Hora acompanhou o torneio de dentro da cadeia. Este é o primeiro episódio da série Esporte Atrás das Grades, que mostra o impacto de atividades esportivas para quem está recluso. Esporte vai muito além de ser passatempo: pode valer premiações, remição de pena e profissão a partir da liberdade.
Hora do campeonato
A bola rola em uma quadra de concreto parcialmente coberta por um telhado de zinco. A mesma estrutura que segura as telhas está presente no restante do pátio, mas servindo de sustento para redes de proteção. Nos muros, agentes armados da Polícia Penal acompanham o movimento abaixo, que também é registrado por câmeras.
— E aí, meu?! — cobra um jogador do Boca Juniors, que abriu o campeonato em confronto contra o Juventus, após conclusão perigosa do adversário.
Nos fundos da quadra, os próximos times começam o aquecimento. Atletas das equipes que seguem aguardando sua vez de jogar acompanham a partida, que segue movimentada.
— “Tá” bom, “tá” bom. A bola é pra frente mesmo! — grita o atacante do Juventus para seu goleiro após ele arremessar uma bola que cruzou toda a extensão do campo e sair.
Na lateral da quadra onde Boca Juniors e Juventus protagonizaram um empate em 0 a 0 está o prédio da galeria. Do espaço projetado para 80 presos, mas que alojava 132 no dia do torneio, apresenta-se outro elemento fundamental do futebol: a torcida. Pelas janelas das celas, detentos assistem aos jogos.
— Boa, Alfredo, boa!
Clássico inglês
O grito para Alfredo — que, assim como os demais apenados entrevistados, não terá seu nome real revelado para preservá-lo — parte de alguém em uma cela ao ver o amigo impedir um ataque no clássico inglês entre Manchester City e Manchester, que terminou 2 a 1 para o time homônimo do comandado por Pep Guardiola.
O empolgado presidiário e outros detentos não escalados para os times acompanham, entre as frestas das grades e os sapatos nelas penduradas, a atividade no pátio.

Regulamento
Além das equipes inspiradas nos clubes ingleses e nos gigantes argentino e italiano também disputaram a competição o Figueira FC e o Botafogo. O último estava na mesma chave que os “Manchesters”. As outras três equipes formaram a outra.
A dinâmica do torneio é simples: jogos dentro dos grupos e o primeiro colocado avança para a final. Os segundos fazem duelo pela definição do terceiro lugar.
As regras e o apito
As partidas têm 10 minutos de duração, cinco para cada lado. Os times são formados por um goleiro e quatro atletas na linha. Apesar de haver apenados com camisas de clubes diversos — Grêmio, Inter, Palmeiras, Vasco, São Paulo, River Plate, Valencia, Juventus, Al-Nassr, Inter de Santa Maria e equipes locais —, os elencos se diferenciam em quadra uns dos outros com o uso de coletes.

| Foto: Jefferson Botega
Apito pouco usado
Os árbitros e oficiais das partidas são estagiários de Psicologia que atuam na cadeia. O apito, apesar de pendurado no pescoço de um deles, é pouco usado. Há o trilar para avisar o momento de as equipes mudarem de lado na quadra e para anunciar o final dos jogos. Em lances duvidosos, os dois estudantes evitam se envolver.
Não por medo, garantem, mas para deixar os detentos se entenderem entre eles. Em ocasiões de muita polêmica, os dois dão a última palavra.

| Foto: Jefferson Botega
Respeito aos árbitros
É o que ocorreu em uma discussão entre os atletas de Botafogo e Manchester City sobre a bola ter ou não ultrapassado a linha do gol em um lance.
De braços levantados, todos olham para o par de juízes. Após breve conferência, há a decisão de que não foi gol. O veredito é prontamente respeitado. Jogo que segue — e que terminaria em 3 a 1 para o Botafogo.
— A sensação de estar perante a quadra é de pressão, porque a gurizada leva a sério — confessou o “árbitro” Arthur Ineu Munhoz.
Momento fundamental
O estudante de 23 anos atua no Presídio Estadual de Júlio de Castilhos em projetos de promoção e prevenção, também realizando atendimentos individuais. Entendendo a lógica do dia a dia da prisão, o jovem vê no torneio um momento fundamental.
— Poder proporcionar essa competição é importante em todos os contextos, inclusive na realidade lá fora, que é o que eles muito esperam. Então, o esporte é um mecanismo pelo qual a gente pode realizar isso — ponderou.
Munhoz reforçou o torneio como um momento de aprendizado para ele e os demais estagiários. Vivenciar o contexto desassistido do cárcere proporciona que eles coloquem em ação práticas integrativas para a população carcerária, auxiliando-a e ganhando experiência.
Alegria e confraternização
Aos 42 anos, Bento é um dos destaques do Juventus. Antes de infringir a lei e ser privado da sua liberdade, jogava futebol na rua, inclusive participando de campeonatos. Entrar em quadra e tocar na bola faz o apenado recordar da vida fora dos mudos da prisão.
— O torneio é muito bom para a gente refletir, pensar nas coisas erradas (que fez). Errar faz parte. E o esporte faz muito bem para a gente relembrar as coisas boas — comentou.

| Foto: Jefferson Botega
Rotina esportiva
A prática esportiva, contou Bento, está presente no dia a dia da casa prisional. Nos horários de pátio — duas horas, normalmente pela manhã —, os apenados se organizam para jogar.
— Vale só pela “física”, para fazer bem para a saúde e não ficar muito parado na cela — explicou.
— O torneio é muito bom para a gente refletir, pensar nas coisas erradas (que fez). Errar faz parte. E o esporte faz muito bem para a gente relembrar as coisas boas — comentou.
Rotina esportiva
A prática esportiva, contou Bento, está presente no dia a dia da casa prisional. Nos horários de pátio — duas horas, normalmente pela manhã —, os apenados se organizam para jogar.
— Vale só pela “física”, para fazer bem para a saúde e não ficar muito parado na cela — explicou.
Artesanato e estudo
Além disso, a rotina conta com oficinas diversas, como de artesanato, e o estudo. Nas rígidas regras que permeiam os dias, a realização do campeonato transforma o ambiente, garante Bento:
— Quando tem torneio é isso aí que você está vendo. É alegria, futebol. Todo mundo querendo ganhar, ninguém querendo perder. Depois é só brincadeira e risada!
Outro adepto do futebol, Célio, 26 anos, concorda com Bento: a competição é um momento de confraternização e ajuda a unir os detentos.
— Tem muitos presos com inimigos. Com o futebol, aí eles ficam mais tranquilos. Mantém mais a calma dentro da casa — afirmou.
Objetivo atingido
Diretor do Presídio Estadual de Júlio de Castilhos à época da entrevista — e hoje delegado-adjunto da 2ª Delegacia Penitenciária Regional (DPR) —, Gabriel Marcelo Moresco destacou que este clima de alegria e confraternização é o grande objetivo por trás do torneio. Se antes da competição são exigidos ordem e bom comportamento, após o que muda é o clima do presídio como um todo.
— Os assuntos mudam, as histórias mudam. A gente quer proporcionar que eles tenham histórias mais positivas dentro do sistema prisional e não só as que envolvem ilegalidades — disse.

| Foto: Jefferson Botega
E completou:
— Queremos que eles possam comentar sobre o gol que foi perdido, aquela bola na trave e dizer “no próximo vou me esforçar mais”. Com as dinâmicas que o esporte traz para a rotina, fica muito mais leve. Algo que escutei tanto da minha equipe quanto dos próprios presos é que a gente, por vezes, esquece que está no presídio quando acontece esse campeonato.
Diálogo para manter a ordem
Célio reforçou também a mudança no comportamento. De acordo com ele, as discussões passam a ser resolvidas de forma amistosa:
— Mesmo tendo as disputas ali, de foi gol ou não foi, o pessoal se resolve. A gente resolve no diálogo, né?
A situação também é ressaltada por Darlan. Na vivência do preso de 32 anos, o esporte ajuda a desenvolver o pensamento positivo, o que evita conflitos:
— Às vezes, acaba tendo uma disputa mais rígida, mas o pessoal se resolve. Discussãozinha é normal, até nos clássicos no futebol. Se “lá em cima” sai uma discussão, imagina no sistema penitenciário.
O foco na ordem e na disciplina também se dá porque eles são fundamentais para que o torneio ocorra. Como observa o então diretor da casa prisional, ela está com superlotação, mas há o controle sobre a massa carcerária.
Condição para o campeonato
Moresco acentuou que valores do esporte como disciplina e respeito às regras são cobrados dos apenados. Caso não haja bom comportamento, a bola não rola. Até o momento, a combinação tem funcionado.
— Nunca tivemos que cancelar campeonato. Nunca tivemos problema de disciplina. Há algumas questões de jogo, alguma discussão, que é super normal. Isso a gente entende, a gente vive no futebol gaúcho — enfatizou.

| Foto: Jefferson Botega
A regra do bom comportamento também vale para outras atividades desenvolvidas dentro do complexo, como as oficinas de costura e marcenaria. Respeitando a orientação, ganha-se a oportunidade de sentirem-se um pouco livres.
— A gente cobra que os presos tenham bom comportamento para que o campeonato possa existir. Mas, ao mesmo tempo, estimula que, dentro do esporte, eles possam criar a noção do respeito e da dignidade e que, no momento do jogo, eles se sintam livres, potentes, disponíveis para vibrar, para comemorar, tudo dentro das regras do presídio, da disciplina e da segurança — explicou Moresco.
O “motorzinho” da prisão
Se tem uma peça fundamental para a realização do torneio ela é a figura do “plantão”. Este nada mais é do que um preso responsável por fazer a ligação entre a massa carcerária e a Polícia Penal. Estão sob sua responsabilidade o controle da galeria, a organização da alimentação, dos grupos que estudam ou fazem oficinas e a saída para o pátio, tudo em consonância com os guardas. É aquele meia que está em todas as áreas do campo: o motorzinho.
Elogios para o presídio
Na Presídio Estadual de Júlio de Castilhos este papel é desempenhado por Elias, 42 anos. Com o campeonato, assume mais responsabilidades. Prancheta em mão, organiza as equipes e os grupos para manter os times equilibrados, além de definir a ordem dos jogos.
Antes de chegar ao presídio da cidade da Região Central, o “plantão” passou por outras penitenciárias. Segundo ele, nenhuma apresentou as mesmas oportunidades que a unidade de Júlio de Castilhos.

| Foto: Jefferson Botega
Poder jogar futebol de forma competitiva, o respeito mútuo entre guardas e apenados, a possibilidade de ganhar prêmios… tudo traz uma sensação um tanto rara para uma prisão:
— Parece que a gente está, de certa forma, livre. Como se estivéssemos em um torneio lá no bairro. Isso é muito bom, traz bastante harmonia entre os detentos, se consegue ter um convívio melhor — compara Elias.
Conselho para os encarcerados
Este sentimento de certa liberdade alcançado por meio do futebol é um dos fatores que Elias elenca ao dar conselhos aos encarcerados mais jovens.
— Esse lugar aqui, na verdade, não é para ser humano, né? A gente tem que enfrentar. Digo para os guris: a gente está preso, não está morto. A autoestima tem que estar sempre em cima. A gente está sempre tentando levantar eles e o esporte ajuda bastante.
Apenas para a final
Além de ajudar na organização do torneio, Elias, que chegou a atuar profissionalmente antes de infringir a lei e ser preso, faz parte do elenco Boca Juniors. Jogador diferenciado, entrou em campo apenas na decisão, na qual a vaga do seu time foi confirmada após disputa de pênaltis com o Juventus.

| Foto: Jefferson Botega
Boca Juniors campeão
Na grande decisão, contra o Botafogo, novo triunfo do clube inspirado no gigante argentino. Com o 4 a 1, a equipe ficou com a taça, as medalhas e alguns dos refrigerantes e pacotes de erva-mate doados à casa prisional.
Os mesmos prêmios foram dados ao segundo colocado e ao terceiro, Juventus. Após uma breve confraternização no pátio, os detentos foram levados de volta às suas celas.
Na galeria, mesmo não tendo saído do cárcere, terão novas histórias para compartilhar com os companheiros e almejar um futuro melhor. Seja pensando na conquista do próximo torneio, seja aproveitando as lições que o esporte oportuniza para, no futuro, buscar uma reintegração à sociedade.
Cenário do sistema prisional gaúcho
Todas as 101 unidades prisionais do Rio Grandes do Sul (84 de regime fechado e 17 de semiaberto) possuem espaço para a prática esportiva. Comumente, são áreas com quadra no pátio de sol. Há alguns estabelecimentos que contam com campos de futebol.
Conforme dados da Polícia Penal, o sistema penal gaúcho tinha, em 30 de setembro, 51.469 recolhidos (47.987 homens e 3.482 mulheres). O déficit total no sistema prisional é de 11.319 vagas, o que corresponde aos regimes aberto, semiaberto, fechado e provisório fechado. Há ainda 11.882 com tornozeleiras eletrônicas. A vasta maioria responde por roubo ou furto qualificados e tráfico de drogas.
Esporte presente no sistema prisional gaúcho
De acordo com a diretora do Departamento de Tratamento Penal da Polícia Penal, Rita Leonardi, não há uma norma estadual que regulamente o uso das quadras e campos dentro das penitenciárias. Porém, algumas das casas têm regras que organizam o uso dos espaços.

| Foto: Jefferson Botega
Leonardi observa que, para além de assegurada como direito através do inciso VI do artigo 41 da Lei de Execução Penal, a prática de esportes no sistema penal possibilita à pessoa privada de liberdade um momento de lazer, recreação e cuidados da saúde. Isto pode ser observado nos hábitos da massa carcerária:
— Os apenados que estão praticando esportes tendem a cuidar de seus hábitos alimentares, reduzindo, assim, os riscos de desenvolverem patologias. Caem também os usos de cigarros e medicações. Observa-se uma melhora no condicionamento físico, o que contribui para evitar lesões para aqueles que estão ligados ao trabalho prisional.
No entanto, a diretora do Departamento de Tratamento Penal ressalta que, sem orientação, o número de presidiário que praticam esportes no pátio é reduzido.
A juíza do 1º juizado da 1ª Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, Priscila Gomes Palmeiro, é responsável por supervisionar a execução das penas de apenados gaúchos e destaca que a prática esportiva é um instrumento de modificação, inclusive de comportamento, sendo relevante no contexto do cárcere.
No entanto, ela aponta que apenas disponibilizar uma bola aos detentos durante o período de banho de sol não é o suficiente. Por outro lado, a magistrada elogia ações organizadas como a realizada em Júlio de Castilhos:
— É uma forma de recreação. Tudo que tira o preso do ócio é saudável. É uma forma de desvio de pensamento, é um investimento na questão mental daquele ser humano que está ali. A juíza enfatiza que a prática esportiva não é indiferente — seja para quem está preso ou não.
— É um instrumento óbvio de modificação, inclusive de comportamento. Fora da prisão, a gente tem inúmeros exemplos de dependentes químicos que se modificam através do esporte — sublinha.
Etapas da reintegração
No contexto de privação de liberdade, mais do que uma opção de lazer, a prática esportiva apresenta-se como um instrumento de reintegração social. Ali adiante, após terem cumprido a sua pena, os apenados poderão ter no esporte um aliado na sua reinserção na vida em sociedade.
Porém, atingir este objetivo pode ser bastante complicado, como explica a professora doutora em Direito Penal Vanessa Chiari Gonçalves. De acordo com a docente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a reintegração social passa por várias etapas.
A primeira — e mais complicada delas — seria a reforma completa do sistema carcerário. Na visão de Vanessa, de certa forma, as penitenciárias foram privatizadas pelas facções criminais, que aliciam nas galerias condenados sem ligações a elas.
— É um problema complexo, que precisa ser enfrentado. Mas, para além disso, nós temos algumas medidas dentro do sistema, todas relacionadas à assistência social, que é um dos direitos previstos na Lei de Execuções Penais — afirma.
Recreação
Dentre os elementos da assistência social, a professora doutora cita o elemento da recreação. Ele envolve atividades artísticas, culturais religiosas e esportivas. Elas são parte da segunda etapa para que a reinserção social ocorra. A grande dificuldade é a distância que há entre a norma e a sua concretude, a realidade concreta.
“Completo abandono”
Sobre os desafios para alcançar a reintegração de presos que cumpriram sua sentença à sociedade está, segundo Vanessa, o período de encarceramento.
— O que nós vemos hoje no sistema (carcerário) é um completo abandono. Então, nós temos instituições de contenção de pessoas. A gente contém, retira da sociedade e depois entrega (de volta). E as facções administram essas pessoas — critica, e reforça sobre a importância de almejar a reinserção social:
Atividades orientadas têm maior engajamento
Segunda Leonardi, o engajamento é maior quando as atividades ocorrem de maneira orientada, podendo ser direcionada à necessidade de fortalecimento muscular do apenado. Fato este que sustenta a afirmação do secretário estadual de Sistemas Penal e Socioeducativo, Jorge Pozzobom:
— O que temos aqui não é um depósito de pessoas, são pessoas que cometeram algum erro, e não tem ninguém que nunca errou na vida, e vem cumprir uma pena. Aí entra a mão do Estado, que tem que buscar todos os esforços para fazer a ressocialização deles, porque um dia eles vão sair.
Neste processo de preparar os presos para o retorno à vida em sociedade, ele salienta a importância do trabalho dos servidores da Polícia Penal. São eles que desenvolvem as ações de remição de pena que, além de reduzir o tempo de cárcere, auxilia na evolução dos presidiários.